quarta-feira, 18 de abril de 2012

As mudanças na formação policial e as universidades

Trecho de um texto, resultado de uma entrevista realizada com os autores pelo Professor José Vicente Tavares dos Santos, responsável pela redação final, juntamente com os sociólogos Dani Rudniki e Carina Füsternau, em Porto Alegre, na primavera de 2003.

JORUGE LIZ PAZ BENGOCHEA: Coronel da RR da Brigada Militar/RS. Autor dos livros “Policiamento Comunitário: como conquistar a confiança da Comunidade” e “Uma Nova Ordem na Segurança”.

LUIZ BRENNER GUIMARÃES: Coronel da RR da Brigada Militar/RS, Coordenador de Segurança Urbana da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.

MARTIN LUIZ GOMES: Ten. Cel. RR, Assessor de Pesquisa e Formação da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana.

SÉRGIO ROBERTO DE ABREU: Tenente Coronel da BMRS, Chefe do Estado Maior do Comando Regional do Litoral Norte do RS.

_______________________________________________________


Historicamente, verifica-se que as Secretarias de Segurança são ocupadas por juristas positivistas ou militares das Forças Armadas, que trazem seus conceitos para dentro desse processo. A abordagem somente através da ideologia positivista ou pela ideologia militarizada é insuficiente e não apresenta soluções eficientes.


Existe um déficit, uma lacuna, uma ausência de discussão, na sociedade brasileira, no Estado, na sociedade civil, no setor empresarial, em todos os setores, sobre a questão do sistema de segurança pública que esteja de acordo com a sociedade brasileira e que estabeleça os processos de relacionamento entre as instituições e seus objetivos sociais, o papel do Judiciário, do Ministério Público e das penitenciárias, e que modelo de polícia a sociedade quer construir para a segurança de todos os cidadãos. Neste contexto, o papel das universidades públicas é fundamental.


O policial precisa ter uma formação acadêmica multidisciplinar, em que as áreas humanísticas, jurídicas, administrativas e técnicas-profissionais sejam abordadas de forma interdisciplinar e com temas fundamentais de cada uma delas, ensejando a transversalidade do currículo. O estado da arte de cada área deve ser enfocado sob a ótica do ofício de polícia. O currículo de formação e qualificação dos policiais deve proporcionar sua autonomia para poder enfrentar os conflitos e buscar a melhor solução. O policial precisa ter uma formação própria, pois apenas o Direito não forma um policial, a Administração não forma um policial, a Sociologia não forma um policial; ou seja, o policial, pela complexidade da sua atividade e importância das atividades de prevenção, teria que ter todo um processo de conteúdo próprio.


Há uma questão polêmica: no momento em que a Brigada Militar adotou como condição essencial para ingresso no curso de oficial o bacharelado em Direito, em 1997, decisão apoiada por 99% dos brigadianos, alguns consideraram que houve um retrocesso na nossa caminhada para uma polícia adequada aos momentos atuais e futuros. Essa opinião provavelmente não representa 1% dos policiais militares. Havia o entendimento de que a única forma de se manter um processo isonômico econômico com os delegados de Polícia e as carreiras jurídicas era ter o Direito como exigência de ingresso. Essa polêmica permanece até hoje.


Houve todo um movimento de transformação na Brigada Militar. Nesse sentido, possuímos uma visão da importância da criação do Instituto de Pesquisa. Começamos a trabalhar um pouco a epistemologia da questão da violência, uma maior aproximação com a universidade, sair do casulo, ter uma visão fora do etnocentrismo e buscar a constituição de uma massa crítica que pudesse fazer um agregado de uma outra polícia que sempre queríamos que existisse.


O policial é aquele que deve estar preparado para resolver a ocorrência sozinho, pois não há um superior para ajudá-lo naquele momento. Para ele estar preparado, tem que haver um investimento muito grande do Estado para dar capacitação adequada em qualquer situação. Para haver esse trabalho, tem que existir investimento na polícia.


Atualmente, no meio acadêmico, não há o domínio do conceito de polícia, porque a polícia sempre foi percebida por todos como uma mão-de-obra não especializada, uma atividade extremamente fácil. Por que ela é uma atividade extremamente fácil? Porque, segundo tal idéia, ela é uma atividade que precisa somente de vigor físico e coragem inconseqüente. Então, não necessita de inteligência, de intelectualidade, estar estudando isso; precisa somente ser uma barreira física para separar o bom do ruim e assim ela foi construída. Por conseqüência, segundo esta concepção, de que precisaria a polícia? A polícia precisaria ter vigor físico e coragem inconseqüente para pegar alguém a unha e servir mesmo como um robozinho, ou seja, separar o bem do mal.


Precisamos trabalhar essa idéia de pensar a polícia enquanto uma atividade complexa e de difícil execução. É necessário que ela seja pensada, também, de dentro para fora, inclusive levantando os problemas e colocando as coisas como são mesmo. Isso é muito importante no sentido de se construir, junto com a universidade, um debate profundo e sério.


A convicção predominante no grupo é a de que as mudanças na polícia só podem sair de dentro da polícia, em conjunto com os campos mais avançados, que são os pesquisadores e especialistas desta área do conhecimento. Então, esse processo de estimulação é uma função da universidade, que instiga, propõe e questiona. A própria polícia tem que disponibilizar as informações e abrir suas organizações, por mais conservadores que sejam.


Ocorre, atualmente, um processo de se inserir no campo universitário a discussão da complexidade da segurança pública e da gestão através da polícia. Essa é a nossa encruzilhada, nesse momento: a compreensão do fenômeno, ou seja, quem dirige a administração pública, para desenvolver políticas de segurança, não compreende o fenômeno.


O problema todo é o seguinte: há um déficit enorme de compreensão sobre esse fenômeno para que se possa formar uma massa crítica para realizar a intervenção política construindo políticas de segurança, pois a abordagem somente pela ideologia positivista ou pela ideologia militarizada é insuficiente e não apresenta perspectivas de solução. Neste contexto, o papel da universidade é fundamental, como tem sido em outras políticas. Todo conceito que é construído pela problematização é mais perene, articulado e dinâmico e tende a ser um conceito da sociedade moderna que também acompanha esses princípios.


O grande desafio colocado no processo de democratização dos países da América Latina, hoje, quanto às organizações policiais, é a questão da função da polícia, do conceito de polícia. Esta definição é manifestada pela transposição da polícia tradicional, voltada exclusivamente a uma ordem pública predeterminada e estabelecida pelo poder dominante, para uma polícia cidadã, direcionada para efetivação e garantias dos direitos humanos fundamentais de todos os cidadãos.